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20130818

Ximenes Belo. Um Nobel da Paz exilado no Porto

Longe de holofotes, como sempre quis viver. O bispo emérito de Díli vive nos salesianos e escreve livros sobre Timor. Raramente é visto em público

Dom Carlos Filipe Ximene Belo
Depois de Ximenes Belo resignar à diocese de Díli, em 2002, D. Basílio Nascimento, bispo de Baucau, telefonou a um padre de Évora. "Acolhe-o aí, porque ele vai arrasado", pediu. O Nobel da Paz chegou a Portugal e refugiou-se no colégio dos salesianos da cidade alentejana. Exausto e doente. "Dizia-se que não dormia e que estaria com um esgotamento", recorda um outro sacerdote de Évora. O cansaço físico e psicológico foram as razões invocadas por Ximenes Belo quando pediu ao Vaticano para ser afastado da diocese de Díli. Tinha apenas 54 anos e João Paulo II demorou menos de 24 horas a aceitar o pedido.

Nas semanas seguintes, os meios religiosos e políticos de Timor mostraram surpresa, nos jornais do mundo inteiro, com a decisão do bispo - apesar de o seu estado de saúde ser amplamente comentado em Díli. No Verão de 2002, quatro meses antes da resignação, o Nobel da Paz quase desmaiou no meio de uma reunião com D. Basílio Nascimento e o então presidente, Xanana Gusmão. "Tiveram de o segurar porque ele estava a cair como uma folha seca. Disse que não se sentia bem há algum tempo e que tinha dificuldade em dormir", contou o bispo de Baucau à Lusa em Novembro desse ano. Depois de passar uma temporada em Évora, Ximenes Belo partiu para Moçambique como missionário dos salesianos. Só mais tarde regressou a Portugal, instalando-se definitivamente numa casa da congregação, no Porto, onde ainda vive.

Aos 65 anos, o bispo e Nobel da Paz - que privou com figuras como Bill Clinton ou Nelson Mandela e cuja voz teve repercussões mundiais - evita o contacto com jornalistas e poucas vezes é visto em público. Segundo o porta-voz dos salesianos, Ximenes tem-se dedicado à investigação e à escrita e está a trabalhar num livro sobre a história eclesiástica de Timor, pouco documentada por culpa das pilhagens e dos incêndios em Díli - que destruíram quase todo o arquivo histórico. "Tem estado a recolher testemunhos e tem consultado a Torre do Tombo", adianta o padre João de Brito. Já em Maio deste ano, lançou um outro livro, "Dom Frei Manuel de Santo António", que reconstitui a história de um monge dominicano do século xvii com responsabilidades em Timor. Os livros do Nobel foram publicados sem qualquer pompa e circunstância. Provavelmente por vontade do autor - que evita a exposição a todo o custo. No último mês, o i tentou falar com o bispo emérito de Díli por diversas vezes. Ximenes Belo recusou todas as investidas. Mas se há quem estranhe o seu desaparecimento, também há quem recorde que sempre teve um temperamento difícil e reservado. "Nunca procurou a exposição e não estava preparado para aparecer. Talvez nem soubesse lidar com o mediatismo em alguns momentos", diz um padre da diocese de Évora.

CANSAÇO OU DESILUSÃO? Dias antes de pedir a resignação, Ximenes Belo esteve em Portugal. De passagem: tinha viagem marcada para Roma, onde foi recebido por João Paulo II. Antes de partir almoçou com o então bispo do Porto, D. Armindo Coelho. À mesa falou apaixonadamente da situação política e eclesiástica de Timor. Na altura discutia-se a criação de uma conferência episcopal local e o Vaticano queria levar a cabo uma grande reforma das estruturas da Igreja timorense.

A relação do bispo de Díli com Roma já não era a melhor. Foram públicas as discordâncias de Ximenes Belo em assuntos como a representação diplomática da Santa Sé em Timor-Leste. O Nobel aceitava que o cargo fosse entregue ao núncio de Singapura, da Nova Zelândia, da Austrália ou mesmo da Papua-Nova Guiné. Mas nunca ao de Jacarta. Timor, entretanto, tornou-se um Estado laico e o Vaticano - onde a influência diplomática da Indonésia sempre teve grande peso - preparava-se para reestruturar as dioceses e dotá-las de bispos titulares, acabando com a figura de administrador apostólico. Estava prevista a criação de uma nova diocese: Munafai, sedeada em Same.

Culpa das discordâncias públicas e do eco político que Ximenes Belo tinha no mundo inteiro - sobretudo depois de ter recebido o Nobel, em 1996 -, muitos membros da Cúria não o queriam à frente de Díli. "Não o desejavam naquele papel, talvez pela forte intervenção política e social que tinha à data. Era o interlocutor mais fiável e mais à mão da imprensa mundial e isso caía mal em Roma. Talvez se tenha cansado de tantas pressões", supõe António Marujo, ex-jornalista do "Público" que entrevistou o Nobel várias vezes e para quem o Vaticano demorou demasiado tempo a compreender a situação timorense.

Logo a seguir ao massacre de Santa Cruz - o tiroteio sobre manifestantes pró--independência no cemitério de Díli, em 1991 -, António Marujo foi a Roma encontrar-se com um monsenhor da secretaria de Estado da Santa Sé. "E ele não sabia o que tinha acontecido em Timor, porque as televisões italianas não passaram as imagens do massacre. A informação não circulava", recorda. De tal forma que o massacre ocorre a 12 de Novembro e o Vaticano só se pronuncia pela primeira vez sobre o caso três meses depois, em Janeiro de 1992 e depois de um diplomata da Santa Sé ter visitado o território. O principal problema na altura era o peso da "fortíssima" acção diplomática da Indonésia em Roma.

Tudo isto terá contribuído, segundo as várias fontes ouvidas pelo i, para o exílio de Ximenes Belo em Portugal. E além da falta de apoio do Vaticano e de alguma desilusão com o rumo do país a seguir à independência, o Nobel tornara-se uma figura indesejada em alguns sectores da sociedade timorense. No início de 2004, já em Portugal, Ximenes Belo é desafiado para se candidatar à presidência de Timor-Leste. Em Maio desse ano, numa entrevista à RTP, o bispo emérito arrumou o assunto. Não aceitaria que o seu nome fosse considerado para nomeação: "Decidi deixar a política para os políticos." Meses depois, e já com a saúde restabelecida, partiu para Moçambique como missionário dos salesianos. Só depois é que se estabeleceu definitivamente no Porto.

O NOBEL TÍMIDO Temperamento difícil, carácter reservado e até melancólico. A descrição de Ximenes Belo, feita pelos que se cruzaram com ele, repete-se - mesmo em diferentes fases do seu percurso. Fugiu sempre dos jornalistas e das entrevistas - mesmo na época de maior mediatismo e a seguir ao Nobel. O jornalista Adelino Gomes sofreu na pele as dificuldades em lidar com a personalidade esquiva do Nobel da Paz. Na década de 1990, o bispo de Díli era a figura mais requisitada pela imprensa - olhado como independente, apesar de ser contra a ocupação indonésia. "Tinha uma relação dificílima connosco. Nunca estava disponível, era preciso insistir, fazer um cerco, e quando se conseguiam uns minutos de atenção era como uma vitória pessoal", recorda. Nas entrevistas, apesar de duro e directo - chegou a dizer que o povo timorense tinha o direito de usar a violência para se defender -, era reservado e cuidadoso. "Era tudo arrancado a ferros", concorda António Marujo. Um dos padres de Évora com quem o i conversou atribui essa timidez - talvez excessiva e que às vezes parecia "uma espécie bloqueio" - ao facto de o Nobel ser uma figura "modesta do ponto de vista intelectual".

Carlos Ximenes Belo, que nasceu numa aldeia timorense nos arredores de Baucau, não estava preparado para assumir o protagonismo que viria a ter. "Teve uma formação convencional, de simples padre. E essa falta de preparação dava- -lhe uma certa inibição quando tinha de se expor", acredita o sacerdote. O Nobel nasceu em 1948 e foi o quinto filho de uma família timorense modesta. O pai, professor primário, morreu quando Ximenes tinha dois anos. Frequentou escolas católicas e depois entrou para o Seminário de Daré, nos arredores de Díli, onde se formou aos 20 anos. Andou por Macau, Timor, Portugal e Roma e entrou para os salesianos. Antes completou o liceu na Escola Salesiana de Manique de Baixo, no Estoril - onde entrou, em 1972, para o noviciado.

Miguel Monteiro, hoje professor universitário, foi colega de carteira do Nobel no colégio dos salesianos no final da década de 1960 e recorda que Ximenes era o rapaz mais calado do grupo de 14 seminaristas que iam ao colégio ter aulas de Latim e Alemão. "Era muito inteligente e percebia muitíssimo de Latim, ao contrário de mim. Era extremamente afável e generoso e deixava-me copiar nos testes", confidencia. Miguel Monteiro retribuía o favor e ajudava o colega no Alemão.

Apesar de despertar a simpatia dos colegas, Ximenes já era, nessa altura, muito tímido. "Sentia que, de certa forma, era um rapaz enigmático. Talvez a timidez se devesse ao facto de não falar fluentemente português", tenta justificar o antigo colega. Um padre que é também professor universitário avança outra explicação para o carácter reservado do antigo bispo de Díli. "Culturalmente, os timorenses têm uma personalidade reservada e um temperamento vincado pelo medo e pela desconfiança, o que é comum em povos que sofreram processos de ocupação", explica.

O BISPO INDESEJADO Com um feitio assim, a chegada a Díli, como bispo, em 1988, não terá sido fácil. Uma fonte eclesiástica recorda que Ximenes Belo foi boicotado, numa fase inicial, pelos padres de Timor. O clero timorense tinha-se radicalizado e o anterior bispo, D. Martinho Lopes, ajudara a resistência e tinha sido afastado por João Paulo II. O futuro Nobel chega a Díli enviado pela Conferência Episcopal da Indonésia - o que criou um clima instantâneo de desconfiança. "Era visto como um apoiante da causa indonésia e muitos padres nem sequer foram à sua entronização", confirma Adelino Gomes. Mas não tardou a ganhar a confiança dos católicos.

Bastaram cinco meses para que, num sermão na Sé Catedral, D. Ximenes Belo tecesse veementes protestos contra as brutalidades do massacre de Craras, em 1983, perpetrado pela Indonésia. Em tempo de ocupação, a Igreja era, aliás, a única instituição capaz de comunicar com o exterior. Ciente disso, o bispo de Díli começou a enviar cartas a personalidades do mundo inteiro, numa tentativa de combater o isolamento imposto pelos indonésios e o desinteresse de grande parte da comunidade internacional.

Escreveu a Mário Soares. Conta-se até que o histórico socialista ficou mais sensível à questão timorense depois de um encontro pessoal com Ximenes. Escreveu também ao Papa e ao então secretário-geral da ONU, Javier Pérez. O bispo defendia que o povo tinha de ser ouvido. E, sem qualquer ideologia política, transformou-se num aliado da resistência.

Em Dezembro de 1996 recebeu o Nobel da Paz, a meias com José Ramos-Horta. Na sequência da distinção, reuniu-se com figuras como Bill Clinton e Nelson Mandela. O bispo católico tornara-se uma referência à escala mundial. E mesmo assim voltava recorrentemente a Portugal - especialmente a Évora, onde ainda mantém uma ligação forte com a família de um dos industriais mais importantes da região. José Manuel Noites, dono de uma fundição, chegou a mandar fazer uma estátua de D. Bosco - o fundador dos salesianos - em bronze, enviada mais tarde para Timor em jeito de homenagem ao então bispo de Díli.

Em 2002, logo a seguir à resignação, o padre salesiano Manuel de Brito garantia ao "Público" que o contributo de Ximenes Belo para o desenvolvimento de Timor não ficaria por ali. "Terá lugar à frente da Fundação Ximenes Belo ou como embaixador itinerante da causa timorense", antevia. No entanto, mais de uma década depois, a realidade do Nobel da Paz é bem diferente.

Por Rosa Ramos
publicado em 17 Ago 2013
http://www.ionline.pt
http://www.ionline.pt/artigos/portugal/ximenes-belo-nobel-da-paz-exilado-no-porto

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