Nasço no
mesmo dia e no mesmo ano que o meu alter-ego sobre quem este livro trata. Eu
sou o Siri Loe a parte gentia da família. A parte oculta. Onde todos esperam
encontrar alento quando tudo falha. Na casa do professor catequista reservam-me
o quarto do fundo. Sombrio e assombrado. A retaguarda segura.
No dia em que
o meu pai chama o meu alter-ego e lhe propõe atravessar a ribeira para a outra
margem onde estão os poderosos, minha mãe diz-lhe de uma forma contundente que
não acha que isso seja necessário. Na minha família já houve um homem muito
poderoso e que era tratado com reverência por Dato Siri Loe. Não acha que algum
dos descendentes seja capaz de lhe superar os feitos. O velho catequista é que
não se conforma ao ser contestado diante dos filhos:
- Se era
assim tão poderoso por que razão se deixou prender, tendo acabado os seus dias
desterrado como Boaventura de Manufahi?
Explica o seu
projecto que irá modificar para sempre a vida do meu alter-ego. Que os
poderosos de que fala são outros. Aqueles que moram na outra margem. Quem o
quiser ser tem de atravessar a ribeira. E depois fazer-se respeitar no meio
deles.
Continuo a
manter a minha identidade. Continuo animista e convictamente animista depois de
ter visto o velho professor catequista mandar pela janela fora um seu auxiliar,
pela simples razão de ter pronunciado mal uma palavra em língua portuguesa. Coisa
que um cristão nunca deve fazer ao outro. A defenestração não consta nos procedimentos
da Bíblia. Nunca um profeta mandou o outro pela janela fora só por ter
pronunciado mal a palavra Yavé. O que valeu ao pobre rapaz foi que a habitação
era de um só piso. O auxiliar catequista veio mais tarde a casar tendo gerado
um filho com o nome de Basílio. O bispo. Que assina o brilhante prefácio deste
livro.
Quando o meu
alter-ego atravessa a ribeira para ir a Dili estudar, minha mãe chama-me à parte
e faz-me a seguinte recomendação:
- Siri Loe,
vai atrás dele. Doravante serás a sua sombra.
Acompanho a
descida do meu alter-ego à capital. Mora na periferia na casa de um afilhado do
meu pai, que tem por inerência cristã obrigação de o receber. Faz os estudos primários
nos salesianos. Entra para o Seminário de Nossa Senhora de Fátima onde, para além
de aprender latim, aprimora a sua vocação musical, de tal forma que lhe é
atribuído o epíteto de o pequeno Mozart de ai
turis laran. Apercebe-se da difícil condição em que vivem os professores
catequistas. Esses pequenos quixotes da Palavra. Faz a primeira reivindicação em
causa própria. O parco ordenado que aufere o seu pai não dá para pagar as
propinas. Toma iniciativa de ir falar directamente com o bispo D. Jaime Garcia
Goulart. O açoriano. Pede para que lhe suspendam o pagamento da propina. Os rigorosos
jesuítas, é que não vão na conversa. Acham o seu gesto um grande atrevimento
por ter ignorado todas as normas protocolares. Deveria falar primeiro com os
seus superiores. Falta de obediência é pecado mortal. Quando se apresenta no
início do ano escolar recebe a carta de despejo. A sua primeira expulsão. Passa
a constar nos registos daqueles que por falta de vocação enfileiram o grosso contingente
dos padres reformados. Aqueles que nas festas de kore-metan combinam estratégias para seduzir as moças utilizando o idioma
de Deus:
- Quo vades, frater Dominicus!
Recebo a
primeira reprimenda do meu pai por não ter refreado os seus ímpetos que o levam
a exceder-se pondo em causa as normas mais elementares que regem as sociedades.
Minha mãe vem em meu socorro:
- Siri Loe,
vai atrás dele. Até ao fim do mundo.
Que quererá ela
dizer com até ao fim do mundo? A mensagem traz um incentivo como se de um
momento para o outro, pelo facto de ter sido preterido por Deus ou por quem O
representa, devesse fazer tudo para ganhar as benesses terrenas.
É assim que o
meu alter-ego começa a fazer a sua escalada. Primeiro no liceu onde se mostra
um aluno brilhante. Experimenta as peripécias do funcionalismo público como chefe
de posto e insurge-se contra as almofadas de ocasião. Marca o passo na tropa
como furriel miliciano. A viagem para a metrópole (por ter sido beneficiado com
um bolsa de estudos do governo português, sendo ele uma aposta das autoridades para
a tão propalada timorização da administração pública) demora tanto tempo quanto
a que ele faz de Aileu para Díli. Mas os tempos mudam rapidamente. É a
primavera marcelista. A contestação sobe de tom. Para mim são tempos difíceis
por causa dos rigores invernais. Para ele nem tanto. Atarefado em dar
explicações a uma colega sobre o que é o efeito multiplicador. O efeito tem efeito
imediato. Rende-se aos encantos da colega. Pede-lhe em casamento. Acompanha as
lutas estudantis e filia-se no MRPP. Assim o fazem outros bolseiros timorenses.
Com o 25 de Abril regressa a Timor como dirigente da FRETILIN. É o autor de Foho Ramelau, o hino do movimento. Faz
campanha nas terras do Dato Siri Loe, o avô materno. De uma maneira ou de outra
assume os desígnios do velho catequista. Ser um homem poderoso. Capaz de mover
as massas com aklalas e vivas. No
momento da invasão indonésia encontra-se em Portugal. Começa então a saga da
Frente Externa. Entra em conflito com os seus camaradas do Comité Central e
pouco a pouco vai-se distanciando deles. Refugia-se em Lisboa. Toma iniciativas
próprias. Viaja por todo o mundo. Cai o muro de Berlim e os poderosos de
outrora deixam de o ser. No oriente floresce a economia dos Tigres Asiáticos, que
se anuncia como o bloco que irá determinar a economia mundial no próximo
milénio. A ideologia deixa de ser o factor determinante e passa a ser o todo poderoso
mercado, o decisor. Decide por sua conta e risco entrar no mundo dos negócios.
Uma ofensa para os seus camaradas do partido, que ainda comungam dos preceitos dos
regimes socialistas e dos preconceitos dos movimentos anti-capitalistas. Tudo
deve ser feito em nome do colectivo. Inclusive as obras artísticas. Recebe o
cartão vermelho do partido. É expulso pela segunda vez. Desta vez pelos seus camaradas.
Em Paris, um
diplomata francês, oferece-lhe uma brochura sobre a vida de Pascal Baltasar, um
príncipe timorense que, depois de ter sido raptado por um dominicano e após mil
e uma peripécias, frequenta a Corte Francesa. O impulso do regresso leva-o a
pedir ajuda gaulesa. Precisa de uma armada que o leve a Timor. É ignorado o seu
pedido. Morre em Paris, pobre e desolado.
O drama do
pequeno príncipe leva-o a pensar que não será esse o seu destino. Toma a iniciativa
de ir falar directamente com os indonésios. Ignora todos os apelos para não o
fazer. O mesmo impetuoso de sempre. Aquele que levado pelo ânimo resolve ir explicar
ao bispo D. Jaime Garcia Goulart o valor elevado das propinas que o seu pai
paga pela sua frequência no seminário. Sobe as escadas do Palácio do Governador
para pedir uma bolsa de estudos a Soares Carneiro. Quer estudar música em
Portugal. Ambas as investidas não recolhem qualquer fruto.
Os tempos não
lhe correm de feição. Os Tigres caem uns atrás de outros como peças de dominó. O
mito ou a fantasia oriental desmorona-se e arrasta com ele os seus
interlocutores indonésios. Cai na penumbra. Nessa condição faz uma travessia do
deserto. Mesmo assim não se esconde. Tem uma coragem invulgar. Submete-se ao
escrutínio do voto popular. Onde espera que o povo faça justiça. Um povo muito
mais maduro que os seus adversários políticos que querem a sua crucificação, dá
a resposta nas urnas. Conforma-se com o resultado. O próprio também não alimenta
ilusões. Ciente de que a democracia, acima de tudo, é a participação. Volta-se
para a Montanha. À procura das suas raízes. Vem ter comigo. Quer saber do Siri
Loe. Digo-lhe que estive sempre ao seu lado. Mesmo quando se ausentou. Mesmo
quando me ignorou. A cerimónia animista na casa de Bismau sela a nossa
reconciliação. Toma em conta as minhas considerações. Um Dato não se submete ao
veredicto popular. Impõe-se pela sua nobreza e pela sua grandeza. Nunca
atravessaria a ribeira para ir buscar na outra margem o que pretende. A grandeza
faz-se dentro de cada um. Com os pressupostos e as circunstâncias que envolvem cada
uma kain e a sua lisan. Terá de fazer novamente a travessia da ribeira de Aileu. No
sentido inverso. Ao encontro das brumas que envolvem as montanhas e os
cafezais. E lá no alto ouve-se o sussurrar do Tatamailau:
- Não é Dato
quem quer. Mas aquele que pelo seu carácter e sabedoria saiba merecer. Assim
seja Siri Loe! Segundo, terceiro ou quarto. A ordem não interessa.
É apenas uma
questão de Tempo.
)* Eng.Luis Cardoso Takas, escritor Timorense e na apresentacao do Livro do Abilio de Araujo (AA)!
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