Marina Morena Costa, iG São Paulo | 24/04/2011
Com mais de 20 anos de docência e há sete anos na rede municipal de ensino de São Paulo, Vladimir Petcov sentiu que estava na hora de “se mexer”. A especialização em Supervisão Escolar, concluída em 2005, e os cursos de formação oferecidos pela Prefeitura eram insuficientes. Formado em pedagogia e professor de educação infantil do CEU São Rafael, em São Mateus, na periferia da zona leste da capital, Vladimir queria fazer uma pós-graduação ou um mestrado.
No site da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do Ministério da Educação (MEC), onde procurava cursos e bolsas de estudo, Vladimir encontrou um edital aberto para trabalhar com formação de professores em Timor Leste. O país lusófono, parte oriental de uma ilha de colonização portuguesa, conquistou sua independência em 1975, mas logo após a saída dos portugueses, foi invadido pela Indonésia, que controla a parte ocidental da ilha. As cenas da guerra que se seguiu e se arrastou por mais de 20 anos matando um terço da população, mais de 250 mil pessoas, impressionaram o professor brasileiro quando ele ainda estava na faculdade. “Tinham muita curiosidade em conhecer o país”, conta.
Vladimir passou no processo seletivo para o Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa e conseguiu uma licença do cargo da Prefeitura, publicada no Diário Oficial apenas quatro dias antes de seu embarque para Timor Leste. Mas difícil mesmo foi deixar a família por 14 meses. “Minha mulher é portadora de deficiência física e totalmente independente, mas deixá-la sozinha com nossos dois filhos adolescentes, na época com 15 e 18 anos, foi uma decisão complicada”, conta. O combinado foi que Vladimir enviaria a bolsa de 1.100 euros (R$ 2.520, aproximadamente) para a família e manteria contato constante por telefone e internet. Do outro lado do mundo, ele se manteve com a ajuda de custo do governo timorense, de US$ 300 (cerca de R$ 600 na época) – a remuneração total do programa equivalia aos rendimentos de Vladimir na educação municipal.
Em Timor, as condições de trabalho foram difíceis, tamanha a carência de infraestrutura do país, mesmo na capital Dili. “Faltava luz elétrica diariamente. Havia gerador, mas não tinha combustível para ele funcionar”, conta Vladimir. O nível de entendimento dos professores timorenses do português também era muito precário. Durante o domínio indonésio, a língua portuguesa foi proibida, a imprensa censurada e o tetum, dialeto local, tornou-se o mais falado no país. Como o tetum tem uma estrutura gramatical bem simples – não há plural, apenas singular, e os verbos não conjugam – o entendimento e o domínio do português são bem limitados entre a população local.
Hoje, Vladimir dá oficinas para professores da rede municipal sobre a experiência vivida em Timor. Conta que trouxe na bagagem diversas impressões sobre um país em reconstrução e a vontade de seguir pesquisando educação.
Leia a entrevista concedida ao iG:
iG: Por que você escolheu ir para Timor Leste?
Vladimir Petcov: Quando eu era jovem, hoje tenho 49 anos, os jornais sensacionalistas traziam imagens da invasão de Timor, da guerra, das mortes e aquilo me impressionou muito. Alguns anos atrás, uma colega professora de história me mostrou um livro da Universidade do Porto (Portugal) que contava sobre os projetos de educação que estavam sendo desenvolvidos em Timor. Aquilo me encantou. Quando abri o edital da Capes, percebi que eu me encaixava nas exigências. A formação que eles pediam batia comigo e resolvi tentar. Mas achei que não tinha grandes chances.
iG: Por que você achou que não seria selecionado pela Capes?
Vladimir: Muitos me disseram que era difícil, um jogo de cartas marcadas. Mas vi que não era bem assim. Preenchi uma ficha de inscrição, montei meu currículo lattes e escrevi uma auto-biografia com 1 mil palavras. Passei para a segunda fase, uma entrevista em Brasília. Fui para lá morrendo de medo, nervoso. Percebi que havia pessoas lá que já tinham participado de uma missão anterior em Timor, profissionais com mestrado, doutorado. Pensei que não era para mim. Mas, para minha surpresa, saiu o resultado e eu tinha sido um dos membros escolhidos. Embarquei no dia 30 de outubro de 2009 e voltei em dezembro de 2010.
iG: O que você acha que foi decisivo para a sua aprovação?
Vladimir: É uma incógnita. A experiência que eu tive em dirigir projeto social com crianças da Vila Prudente (zona leste) pode ter sido um diferencial. Trabalhar com a realidade da periferia, em um local de violência extrema, de pobreza extrema, talvez tenha dado uma grande contribuição.
iG: Você lidou com situações de pobreza e violência em Timor Leste?
Vladimir: Éramos uma equipe de 34 profissionais, divididos em quatro grupos – o meu era de formação de professores da rede pública. Ficamos em Dili, na capital, que não tem uma violência gritante, mas uma profunda carência de infraestrutura. É muito parecido com o que a gente vê nas nossas periferias: ruas sem asfalto, sem água e esgoto encanados, casas de tijolos aparentes, crianças brincando nas ruas. Timor é como isto aqui (ele aponta as favelas que cercam o CEU São Rafael).
iG: Como essa carência afetou o trabalho?
Vladimir: Faltava energia três vezes por dia e não havia como dar as oficinas de capacitação sem luz. O Instituto de Formação Profissional e Contínua tinha geradores, mas eles não funcionavam por falta de combustível. Em um acordo de cooperação entre dois países, deve haver responsabilidades dos dois lados. A de Timor era dar garantia do mínimo necessário para a gente dar o curso. Mas não havia ninguém do nosso governo para intervir.
iG: Como era o curso de capacitação dos professores timorenses?
Vladimir: O nosso programa visava dar uma formação em nível médio aos professores de educação básica (ensinos infantil, fundamental e médio). Esses docentes não tinham formação nenhuma, muitos nem tinham concluído o ensino médio. Tornaram-se professores por uma necessidade cívica, porque sabiam falar português e o país precisava que falantes da língua fossem para as escolas ensinar as crianças. As turmas faziam um curso a distância, o Pró-Formação do MEC, e passavam nas oficinas de 15 em 15 dias. Era feito uma revisão da unidade e aplicada uma prova. Ao final de quatro unidades era aplicada outra avaliação e recuperações contínuas das unidades. Formamos 84 professores, de três distritos.
iG: Quais avanços vocês tiveram?
Vladimir: Conseguimos instituir a ideia de projeto, de trabalhar com as necessidades da escola, do aluno, dos problemas da comunidade. Até então a ideia de educação deles era de reprodução e cópia dos materiais didáticos. Conceitos como começo, meio e fim, objetivo, justificativa, conclusão não eram do domínio dos professores.
iG: Quais dificuldades você enfrentou?
Vladimir: A gente não teve uma capacitação aqui no Brasil que nos preparasse para o que encontraríamos em Timor, em termos de história do país, características da população, infraestrutura, economia, cultura, nada disso foi passado. Eu tinha um conhecimento prévio, porque era um local que me interessava e porque pesquisei em livros, teses e na internet. Sobre o programa usado, o Pró-Formação, também não foi explicado nada. Não fizemos um workshop, nem curso a distância. Além disso, o material didático do MEC tinha sérios problemas de adaptação. Não se respeitou o nível de entendimento que os professores estão da língua portuguesa, que é a segunda ou a terceira para eles. Para adaptar um material didático, não basta trocar fotos e escrever “Timor Leste” onde antes estava escrito “Brasil”.
iG: O que você trouxe desta experiência?
Vladimir: É interessante ver o nosso país do lado de fora, ter a dimensão da potência que nós somos. Redescobrir o valor da língua portuguesa, a riqueza vocabular, a pronúncia das palavras. Eles se encantavam com esses aspectos do português, que no dia-a-dia nos passam batido. Ver a história de Timor é reviver a história do Brasil, que também teve colonização portuguesa. Voltei com uma vontade enorme de pesquisar, de o processo histórico educacional nas colônias portuguesas. Assumi o título de professor-pesquisador, porque não posso parar de investigar o mundo em que eu vivo.
Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br
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