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20100902

Uma lei para cada colónia

Por Maria Cândida Proença
http://www.jornal.publico.pt/

Em 27 de Maio de 1912, Ezequiel de Campos, analisando os problemas causados pelo enorme fluxo migratório para o Brasil, afirmava no Parlamento: "Se tivéssemos sustado a tempo a loucura de olhar apenas para o mar, podíamos hoje, em vez dos rudes 60.000 emigrantes que nos depauperam, enviar, não para o Brasil e para o resto da América, mas para os nossos domínios de África, 80 ou 100 milhares da indivíduos fortes e criarem lá um novo Brasil, duplo padrão duma raça ousada e aventureira, sem deixar de valorizar como devíamos o solo pátrio" (Diário da Câmara dos Deputados, 27/5/1912). A utopia da criação de novos "Brasis" em África esteve sempre presente nas propostas colonialistas dos republicanos que aspiravam construir um vasto e desenvolvido império ultramarino que teria como pólo principal o território angolano.

Profundamente patrióticos e colonialistas, os republicanos desde cedo incorporaram no seu discurso de propaganda política a defesa da salvaguarda, manutenção e desenvolvimento dos territórios ultramarinos, nomeadamente pela canalização da corrente migratória para África. Estiveram longe, porém, de conseguir concretizar esse desiderato, pois, ao alcançar o poder, ver-se-iam confrontados com a dura realidade dos factos e tomariam consciência das enormes dificuldades em implantar os seus projectos de engrandecimento do império e consequentemente do país.

A República herdara da Monarquia um vasto império, mas pouco desenvolvido, com uma diminuta percentagem de população branca, uma apenas incipiente rede de transportes e onde perduravam formas ancestrais de trabalho. Entre os muitos problemas que afectavam o Império, destacava-se logo o facto de ainda não estar nem totalmente pacificado, nem com as fronteiras completamente demarcadas. Das várias reacções das populações nativas à ocupação portuguesa, o caso de Angola era, sem dúvida, o mais problemático. Na região do Congo, mantinha-se a instabilidade e a guerrilha que, a partir de 1913, se reacendeu, transformando-se em guerra aberta e obrigando a desviar tropas da Zona Sul de Angola, onde os territórios dos cuanhamas e cuamatas mantiveram viva e permanente a contestação até 1918. Só após os sangrentos combates da Grande Guerra, foi possível completar a pacificação de Angola, que veria chegar o fim do regime republicano sem ter ainda completamente demarcada a fronteira sul. Outros territórios, como Timor e Moçambique, também só viriam a estabilizar os seus limites pela mesma altura.

Em territórios ainda não completamente pacificados, com características muito diferenciadas, com uma notória falta de quadros administrativos e com uma população nativa que se mantinha num nível civilizacional atrasadíssimo, difícil se tornava aplicar um sistema administrativo e financeiro baseado nos princípios da autonomia e descentralização defendidos pelos republicanos. Por isso, apesar de ter a autonomia e descentralização como guias, o regime republicano não conseguiu derrubar as peias burocráticas e mercantilistas que os interesses económicos sempre procuraram manter, impedindo a realização do terceiro objectivo da sua política colonial - o fomento.

Hierarquia e organização

Com o advento da República, estava aberto o caminho para o triunfo do princípio da descentralização administrativa do Ultramar português, como, claramente, viria a ser expresso no artigo 67.º da Constituição de 1911, que afirmava "Na administração das províncias ultramarinas predominará o regime de descentralização, com leis especiais adequadas ao estado de civilização de cada uma" e se atribuía a tarefa de elaborar as leis orgânicas das províncias ultramarinas ao primeiro Congresso da República. A concretização deste objectivo não foi imediata, e seriam ainda necessários três anos até que os primeiros projectos tendentes à realização prática destes princípios fossem apresentados no Parlamento.

Durante este período a discussão sobre o modelo a seguir na organização administrativa do Ultramar incidiu sobre a forma de concretizar os preceitos constitucionais: deveria o Congresso elaborar uma carta orgânica específica para cada colónia ou aprovar um documento com as bases gerais da administração ultramarina, permitindo depois que os órgãos próprios de cada colónia elaborassem as respectivas cartas orgânicas? Enquanto os executivos democráticos se enredavam nesta questão, a legislação sobre o ultramar manifestou um carácter avulso e desconexo, dando apenas resposta aos problemas conjunturais que iam surgindo.

A excepção, tal como viria a acontecer em outras ocasiões, veio da administração de Norton de Matos, que, como governador de Angola, promulgou, em Abril de 1913, um novo regulamento das circunscrições desta província ultramarina em que, duma forma coerente e articulada, não se limitava a definir uma nova divisão administrativa, mas regulamentava também as competências dos diferentes órgãos locais e incluía normas de administração financeira.

As leis n.º 277 e 278 que constituíram o primeiro projecto para pôr em execução os princípios descentralizadores tão apregoados pelos principais colonialistas republicanos só foram promulgadas a 15 de Agosto de 1914. Nelas se enunciavam os princípios orientadores para a organização administrativa de todo o Ultramar, a que se seguiria a elaboração de cartas orgânicas para cada colónia, adaptadas ao respectivo estado civilizacional.

A organização proposta combinava a manutenção de um órgão executivo de nomeação governamental, directamente subordinado ao ministro das Colónias, a quem era confiado o poder de direcção de toda a administração do território da colónia - governador - com a existência de corpos representativos das populações coloniais - conselhos de governo - que funcionariam como pequenos parlamentos que, sob a presidência do governador, poderiam consultar ou deliberar sobre os mais importantes assuntos da administração da colónia. Subordinada ao governador existiria uma rede de funcionários - os chefes de serviço da colónia - que, além da preparação dos assuntos para despacho, poderiam, por delegação, resolver algumas questões de administração corrente. Nas colónias divididas em distritos previa-se a existência de governadores distritais com latas atribuições e, à testa das divisões menores dos territórios, chefes de concelho e de circunscrição civil, ou capitães-mores e comandantes militares e, abaixo destes, chefes de delegação, de divisão ou de posto, administradores de bairros, aldeias freguesias e localidades, reportando cada um deles à entidade "imediatamente superior na ordem hierárquica".

À pirâmide executiva correspondia uma organização similar nas instituições representativas que se sucediam aos conselhos de governo. Criavam-se, assim, os conselhos distritais, que representavam no distrito função análoga à dos conselhos do governo na colónia; as câmaras ou comissões municipais nas localidades onde o número de elegíveis o justificasse, e, com uma acção mais restrita, as juntas locais. No primeiro plano da administração colonial consideravam-se ainda os tribunais "especialmente incumbidos do julgamento de todas as questões do contencioso administrativo e fiscal".

À primeira vista, os documentos não pareciam muito inovadores, nem capazes de modificar radicalmente a situação vigente, mas o seu carácter de renovação profunda residia nas competências que atribuía aos diversos órgãos, do governador, que passaria a dispor de maior autonomia e poder, aos conselhos de governo, conselhos de distrito e comissões municipais, que tinham tido até então uma acção apagada, situação que seria modificada ao passarem a dispor de competência deliberativa, dada a exigência da necessidade do seu voto afirmativo para a execução de uma série de providências governativas.

Após a promulgação desta organização geral, estipulava-se o prazo de um ano para que as diferentes colónias procedessem à elaboração das respectivas cartas orgânicas. Este processo foi, porém, moroso e complicado e por várias vezes o Parlamento se viu obrigado a prorrogar prazos devido aos sucessivos atrasos nos trabalhos das diferentes colónias. Só ao longo do ano de 1917 foi possível promulgar as cartas orgânicas das colónias com as seguintes datas: Cabo Verde em 26 de Abril; Guiné em 31 de Maio; Índia em 27 de Julho; São Tomé e Príncipe em 11 de Agosto; Timor em 23 de Agosto; Macau em 5 de Novembro e Angola em 28 de Novembro. A carta orgânica de Moçambique não chegou a ser promulgada e as que já estavam publicadas também tiveram vida efémera porque as mudanças políticas ocorridas no consulado sidonista implicaram a sua anulação por decreto de 1 de Julho de 1918, com o fundamento de que, ao serem um simples decalque das bases das leis nº 277 e 278, se traduziam num emaranhado de disposições fragmentárias e incompletas causadoras de confusões e perturbações administrativas.

Morto Sidónio e reposta a anterior organização administrativa do Ultramar, as cartas orgânicas foram novamente postas em vigor, pelo decreto de 10 de Maio de 1919 que revogava o documento sidonista considerado como antiliberal. Pelo mesmo decreto eram criadas novas entidades governativas para as colónias - os comissários da República, um para todos os domínios ultramarinos da África Ocidental e outro para Moçambique, que tiveram vida efémera porque, ao mesmo tempo, decorria a revisão da Constituição, o que foi motivo para novas discussões acerca da administração ultramarina, prevista nos artigos 67.º e 87.º, voltando-se a insistir na definição do tipo de autonomia a conceder às colónias. Também agora o problema não se apresentava de fácil resolução, até porque a situação internacional era bem mais complexa.

Para a comissão de revisão constitucional, a descentralização, prevista na Constituição, tal como vinha sendo praticada, não passava de uma farsa, porque as autoridades locais eram nomeadas pelo poder central, pelo que, apesar de deterem atribuições próprias e gozarem de uma certa autonomia, não havia descentralização. Outro dos princípios adoptados pela Constituição e considerado como um dos grandes avanços da República era o da especificidade das leis relativas a cada colónia, aceite sem contestação, porque só o desconhecimento dos costumes e das instituições indígenas poderia justificar que se mantivesse o preceito monárquico da unidade legislativa, sistema infeliz e de resultados improfícuos, imbuído de falsas ideias de liberalismo, ao pretender estabelecer o critério da assimilação dos indígenas como norma de administração das colónias.

Indecisões

A revisão constitucional procurava reforçar os princípios fundamentais da administração colonial republicana: descentralização administrativa, autonomia dos órgãos locais e especificidade das leis de cada território. Neste sentido, a 7 de Agosto de 1920, foi aprovada a criação de Altos Comissários para as províncias de Angola e Moçambique. As novas entidades, dispunham de uma mais ampla autonomia que incluía a atribuição de funções legislativas, dentro dos limites fixados no diploma. Continuava, porém, a ser da exclusiva responsabilidade do Congresso da República a legislação em matérias que abrangiam cessão dos direitos de soberania, resoluções sobre limites do território, declarações de guerra, resolução definitiva de tratados, autorização de empréstimos que exigissem garantias especiais, concessões que envolvessem exclusivo ou privilégios especiais e alterações do poder judicial.

Aprovadas algumas disposições complementares relativas à organização dos diversos conselhos locais com competências legislativas, administrativas e financeiras, a legislação necessária à implantação do novo regime colonial ficou completa em Outubro de 1920. No início de 1921, partiam os primeiros altos-comissários para Moçambique e Angola, respectivamente Brito Camacho, a 24 de Fevereiro, e Norton de Matos, no mês seguinte.

A experiência dos altos-comissários não deu os resultados esperados, porque existiam ainda grandes indecisões quanto à política ultramarina. O modelo administrativo, embora com algumas ambiguidades, estava definido, mas as traves mestras da orientação nos mais variados aspectos da política colonial, do modelo de desenvolvimento económico às directrizes sobre colonização, trabalho indígena ou relações internacionais, entre outros, estavam por definir. À indefinição legislativa veio juntar-se a crise financeira dos anos 20 que teve sérias repercussões nos territórios de Angola e Moçambique, com fortes desvalorizações da moeda local, situação que não só dificultou as relações económicas com a metrópole, como impediu o cumprimento das obrigações com os empréstimos estrangeiros, vindo a comprometer, em definitivo, os projectos de fomento para Angola e Moçambique.

Investigadora do Instituto de História Contemporânea da FCSH
http://jornal.publico.pt/noticia/02-09-2010/uma-lei-para-cada-colonia-20031717.htm

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